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DONA ESPERANÇA

Esperança, um estranho nome para uma filha de imigrantes japoneses que aportaram na velha Mooca no começo do século passado, um bairro que até os anos 1940 era um típico reduto operário da Paulicéia. Quando menina ela foi estudar num antigo externato na Rua dos Trilhos, ainda no tempo em que havia trilhos na rua. A escola pertencia a três irmãs solteiras que vieram de Campinas. Lá foi alfabetizada e concluiu o primário. Como era muito estudiosa e aplicada se destacou entre as outras crianças e depois de formada ajudava as professoras com os novos alunos. Com a morte prematura dos pais, foi morar com as antigas professoras e ajudava em tudo, vendendo materiais escolares e dando aulas básicas de inglês que aprendeu com uma professora particular e outras tarefas. Mas Esperança ia além, pois como o bairro era carente de serviços de saúde, era ela quem socorria a população aplicando injeções até altas horas da noite. As professoras foram envelhecendo, vieram mais escolas públicas, o ba
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ARGEMIRO PIFFER, BEQUE CENTRAL DO TIME DA VILA

Argemiro, Miro ou Mirão, era nosso vizinho. Filho mais velho do seu Afonso, que era barbeiro nas horas vagas e aparava as madeixas dos vizinhos e garotada. Miro gostava de se sentar sobre o muro de sua casa sem camisa exibindo seu corpo atleta com uma águia tatuada no peito. Era uma águia simples, pois as técnicas de tatuagem ainda estavam bem distantes das atuais. Miro era também beque central do Estrela F.C de Vila Marlene, o glorioso time do bairro com seu garboso uniforme vermelho, que jogava num campo de terra batida que deixava os jogadores com as pernas e braços ralados após os jogos. O Miro era respeitado e jogava duro para segurar os ataques adversários, normalmente um time de outro bairro que vinha disputar uma cobiçada taça. Aos domingos e feriados eu não perdia um jogo do Estrela e nas vitórias ou derrotas eu acompanhava o escrete caminhando com as camisas nas mãos em direção à sede que ficava ao lado do bar do Serafim, um espanhol apaixonado por futebol. A sede era um b

RICHARD HENRY CLAYTON, UM INGLÊS NA MINHA SALA

Numa multinacional francesa apareceu do nada um inglês contratado para uma posição acima da do meu chefe. Inicialmente, ele não tinha sala e ficou acomodado numa pequena mesa que existia na minha salinha, ao lado do meu superior. Richard era um homem alto, magro e usava grandes óculos e não se incomodava em esticar suas longas pernas para os lados. Poderia pedir a minha mesa e ocupá-la sem maiores cerimônias, mas nunca aventou tal possibilidade. Era sempre um gentleman e revezávamos no cafezinho. Às vezes me servia e em outras eu o servia. Como um bom inglês, sentia falta do chá e eu acabei resolvendo, comprando uma chaleira elétrica que ele pagou com grande prazer. E assim, tínhamos chá todos os dias. O seu Afonso Salmeron Castilho, um velho faxineiro espanhol providenciava a bebida na salinha onde ficavam os materiais de limpeza. Richard tinha uns hábitos peculiares. Arregaçava a camisa social invariavelmente branca até o antebraço e lá enfiava o maço de cigarros Continental com fil

LUTO: FLADEMIR BASSI LOPES

Recebi hoje a triste notícia da partida do querido professor Flademir com quem trabalhei durante vinte anos na FEI. Flademir um mestre sempre dedicado aos seus alunos e ao ensino. Trabalhou muitos anos como executivo na ZF e Otis na área de Compras e terminou sua carreira como professor de Teoria Geral de Administração na FEI durante mais de 30 anos. Para os colegas era um bom conselheiro pela sua grande experiência profissional e como mestre era também um ombro amigo para apoiar e orientar seus pupilos. Já afastado da vida acadêmica, dividia-se entre São Bernardo e São Pedro, onde tinha uma casa de veraneio. Mas no meio do caminho apareceu um câncer que o venceu hoje às 6 horas da manhã. Gostava de contar uma história quando sofreu um grave acidente nos anos 1980 e foi dado como morto. Sua família chegou a ser avisada, mas ele não desistiu da vida e sobreviveu por mais 30 anos. Esse era o grande professor Flademir. Meus sentimentos à esposa, filhos e netos do querido mestre.

NO SÉCULO PASSADO, QUASE TODOS ERAM RACISTAS

Quando Euclides da Cunha publicou seu livro mais famoso, Os Sertões, baseado na sua experiência como repórter do Estadão na cobertura da Guerra de Canudos, a “hierarquia das raças” era dominante na sociedade brasileira e no mundo ocidental, incluindo o meio acadêmico. No século XIX as teorias de Arthur Gobineau sobre a superioridade dos brancos era consagrada e D. Pedro II foi seu admirador e correspondente. Tinha-se como consagrado, que os povos europeus haviam conquistado a América e a África pela sua superioridade racial, fazendo jus a escravização dos povos nativos. Em Os Sertões, Euclides da Cunha, um engenheiro militar culto se esmerou em expor as teorias racistas que conhecia, em boa parte do livro, no capítulo em que descreve as populações do Nordeste. Atualmente muito se fala em Monteiro Lobato pelas inferências racistas em sua obra, principalmente na literatura infanto-juvenil. Por isso, já houve até propostas de censurá-la ou reescrevê-la, retirando passagem que indicam pos

CARMEN MIRANDA

Na minha infância ainda se ouvia falar sobre a grande cantora Carmem Miranda, cujas canções que interpretou fizeram história e ficaram no imaginário do povo. Minha mãe sabia algumas que ela cantava e um irmão dela, que morava no Rio, garantiu que a via sempre por lá e assistiu vários shows que fazia ainda no começo da carreira. Como ainda era muito criança, pouca coisa me lembro sobre ela e a mais marcante era uma revista “O Cruzeiro” que havia em casa sobre o seu funeral, que minha mãe guardou por muitos anos. Foi um grande acontecimento que marcou a cidade maravilhosa. E agora, depois de tanto tempo, resolvi enfrentar a magnifica biografia de mais de 400 páginas sobre essa mulher espantosa, escrita por Ruy Castro, um competente biógrafo. Ouvindo os mais velhos, me lembro das conversas sobre o fato dela ter se americanizado, perdendo a sua brasilidade. Falavam como se ela houvesse traído o seu povo. Nada mais falso. Para começar essa mulher magistral, apesar do pequeno tamanho, n

MEU TIO CARIOCA

Meu tio Elisário foi para o Rio de Janeiro em meados de 1928 para estudar e trabalhar. Lá se hospedou na casa de um médico, parente de sua mãe, chamado Ajax Rabello. Era o meu tio carioca, como todos que no Rio moravam, tinham direito a alcunha, não importando a origem, como o pernambucano Nelson Rodrigues, a portuguesa Carmem Miranda ou o livreiro francês Baptiste-Louis Garnier. Mesmo antes de concluir o curso de guarda-livros, nome que antigamente se dava aos contadores, ele já estava trabalhando em um banco, fazendo escriturações contábeis com sua letra pequena e caprichada. No Rio ele vivenciou a grande crise de econômica de 1929, mas não chegou a perder o emprego. Contava em cartas para os pais que moravam em Araçatuba, interior de São Paulo, as novidades da capital federal. Citava que o presidente da República ia ao banco sem nenhum aparato de segurança, como um cliente comum. Outras vezes o via tomando um carro para ir a algum compromisso sem nenhum aparato, difícil de imagi